Nos recantos da minha alma eu sinto os vapores quentes de outros tempos,
como se as farpas se voltassem a espetar em meus braços. Não sei como
meu corpo ainda não range, aquele ranger de portas de casa antiga,
aquele trautear do soalho encerado pelos últimos raios de sol do dia.
Não sei porque meus olhos não mentem, estão translúcidos,
vazios,intactos. Só se revolta a alma, se bem que com um cansaço que
ainda se vai cansando.
Espetaram-me facas por todos os lugares proibidos do meu corpo e eu não
sinto. A sensibilidade crua foi-se embora, fugidia como a esperança, é
como se hoje os espelhos da casa onde habito se tivessem embaciado. Por
mais que minhas mãos travem uma luta só sua, para limpar a neblina, a
imagem reflectida será sempre fria, nunca será real. Derrepente um
espelho despedaça-se em três. O número simbólico que nos aproxima da
sorte, do pronto, da decisão. Olho fixamente e reparo que a forma dos 3
vidros, que outrora foram uma só realidade me mostram sem sombras nem
enfeites: o presente, o passado e o futuro. Só me interessa olhar a
minha face no espelho do passado, a inexistência da vivacidade dos meus
olhos impede-me de reconhecer o futuro. Os meus olhos são passado.
Passado que se fantasia de presente e se deita na cama com o futuro. Não
sei o porquê, mas a minha alma dá à luz o meu passado.