quinta-feira, junho 6

Aguarelas quebradas de um azul que não se escurece.

A cor branca e doce da cocaína espalha-se flamejante por todas as zonas do meu corpo, sem que o coração a acompanhe fielmente no trajecto. A tua língua ácida percorre o meu pescoço para me anestesiar.
Não deixo.
Recuso.
É tarde demais para me tirares do quadro que pintei esta noite. Aguarelas quebradas de um azul que não se escurece.





A Lucidez Perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já  me aconteceu antes.
Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade  -
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

(Clarice Lispector)