segunda-feira, outubro 7

A ideia de pegar na caneta desta vez, torna-se declaradamente assustadora. Como se a tinta abrigada em seu corpo plástico me contasse em pleno, sem nenhuma falha a apontar, o segredo que guardo.
Sinto o mundo a pesar-me na mão que escreve, direita que se  entorna em cada palavra-lágrima que se derrama no papel.






quarta-feira, setembro 25

quinta-feira, julho 11

Os meus olhos são passado

Nos recantos da minha alma eu sinto os vapores quentes de outros tempos, como se as farpas se voltassem a espetar em meus braços. Não sei como meu corpo ainda não range, aquele ranger de portas de casa antiga, aquele trautear do soalho encerado pelos últimos raios de sol do dia.
Não sei porque meus olhos não mentem, estão translúcidos, vazios,intactos. Só se revolta a alma, se bem que com um cansaço que ainda se vai cansando.
Espetaram-me facas por todos os lugares proibidos do meu corpo e eu não sinto. A sensibilidade crua foi-se embora, fugidia como a esperança, é como se hoje os espelhos da casa onde habito se tivessem embaciado. Por mais que minhas mãos travem uma luta só sua, para limpar a neblina, a imagem reflectida será sempre fria, nunca será real. Derrepente um espelho despedaça-se em três. O número simbólico que nos aproxima da sorte, do pronto, da decisão. Olho fixamente e reparo que a forma dos 3 vidros, que outrora foram uma só realidade me mostram sem sombras nem enfeites: o presente, o passado e o futuro. Só me interessa olhar a minha face no espelho do passado, a inexistência da vivacidade dos meus olhos impede-me de reconhecer o futuro. Os meus olhos são passado. Passado que se fantasia de presente e se deita na cama com o futuro. Não sei o porquê, mas a minha alma dá à luz o meu passado.

quinta-feira, junho 6

Aguarelas quebradas de um azul que não se escurece.

A cor branca e doce da cocaína espalha-se flamejante por todas as zonas do meu corpo, sem que o coração a acompanhe fielmente no trajecto. A tua língua ácida percorre o meu pescoço para me anestesiar.
Não deixo.
Recuso.
É tarde demais para me tirares do quadro que pintei esta noite. Aguarelas quebradas de um azul que não se escurece.





A Lucidez Perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já  me aconteceu antes.
Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade  -
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

(Clarice Lispector)