quarta-feira, agosto 22

"Mais Nada Se Move Em Cima Do Papel"





mais nada se move em cima do papel 
nenhum olho de tinta iridescente pressagia 
o destino deste corpo 

os dedos cintilam no húmus da terra 
e eu 
indiferente à sonolência da língua 
ouço o eco do amor há muito soterrado 

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço 
no interior desta ânfora alucinada 

desço com a lentidão ruiva das feras 
ao nervo onde a boca procura o sul 
e os lugares dantes povoados 
ah meu amigo 
demoraste tanto a voltar dessa viagem 

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas 
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão 

assim me habituei a morrer sem ti 
com uma esferográfica cravada no coração 

Al Berto, “O Medo”

segunda-feira, agosto 13

Sente-me o gosto


Tomaste-me em teus braços como o mar que se envolve no céu gelado de branco assustado pelo vento que o parece rasgar.
 Os teus dedos são tão leves na minha pele que só de mente presente os sinto deslizar. Os teus olhos mudam de cor ao passo que as tuas mãos envolvem todas as linhas do meu corpo suado, com um brilho quente, esquartejante, embriagado que se afasta ao relento. Não sei o que faço. A minha pele percorre-te ofegante sem feridas para contemplar. Arrancaste estas feridas sem deixar marcas, deixando imaculada a tela do meu corpo.
Sei que a alma te agarra enquanto a boca se deleita no teu ombro. Dou-te um beijo suave e percorro o teu desgosto.
Tu ofereces-me o mundo em troca sentes-me o gosto. 
As tuas palavras sonham mas trazem-me uma realidade que já esqueci. Como se a vida fosse só tua e eu a vivesse através de ti. Palavras. Tantas palavras que se conjugam num amor pintado nas paredes do quarto.
Dou-te sendo tua, os meus pés que são teu caminho, repleto de traços. Os traços da tua pele que me alentam o corpo cansado, rasgado, recortado vezes sem conta e por ti junto, reunido, inteiro pela primeira vez desde que é corpo.
Agora digo-me inteira, já não me reparto em pedaços. A história respira nos pedaços. Os pedaços são o espaço que ocupa a história, A minha história é um conto que roça levemente a ficção, escreve-me o final, eu que se deu no outro. Escreve. Escreve-me nos teus gestos, prende-me ao teu abraço, tatua-me com o sal das minhas lágrimas em teu peito. Faz-me de vez tua e deixa-me adormecer no meu próprio cansaço.

sexta-feira, maio 25

Sílaba

Nas tuas mãos de seda encrespada que rouba o violeta, eu derramo os olhos que não fechei. Aguardo timidamente o toque das mãos, uma sílaba que fecha as palavras me reparte sem me magoar. E eu peço tempo, recuo no espaço. Dou-te o lugar, tu dás-me o amor em teu abraço, quente que queima aos poucos a pele das costas que ferida levemente se cura quando é tocada.



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Na ponta da caneta eu deslizo as minhas canções de amor. Tu. Tu, meu amor.

terça-feira, abril 24

Olhos cor da àgua

Não sei quantas vezes te encontro em mim como se me perdesse de sentidos e te encontrasse em cada traço que perfaz o meu olhar. Como se os olhos se repartissem em pétalas cruzadas ela madrugada que aos teus olhos se desfazem em tons de violeta trespassando as minhas mãos que te pedem para falar. Sossego-te, arranco-te do som inquieto que não te deixa dormir, das vozes que cantam aos teus ouvidos ruídos que fazem o teu coração bater acelaradamente todas as noites. Todas as noites eu te beijo enquanto o teu sono é descansado. Quando ele se corrói de escuridão e luzes negras espelhadas na tua face eu recolho-me ao meu lugar. Sei que não sou daí. Que nunca sentirei na pele as palavras que contas e aquelas que guardas só para ti. Cuidas de mim. Eu sei. Eu só queria fazer o mesmo por ti. Deitar-te no meu colo e fazer-te adormecer, para que acordasses sem esse peso que te fecha os olhos pintados de pedaços de solidão que quando olham os meus se dividem em pedaços de verde vivo tão vivo que eu não sei explicar. Olha-me com esses olhos, sente todos os pormenores de mim em cada olhar. Eu estarei sempre aì. Nos teus olhos. Nos olhos que eu roubei para mim. Olhos cor da água. Olha-me com os nossos olhos. Profundamente. Cegamente, olha-me com a cor da àgua.

domingo, janeiro 22

Amar-te

Este cheiro a terra que se entranha no meu olfacto, relembra-me os dias em que a chuva abençoou os nossos beijos e abraçou os nossos passos.
Quando paraste, os teus pés uniram-se ao chão e dentro de ti era sonhado mais um momento que não viveste, que pressentes que não vais viver mas que se torna tão real dentro de ti. Os teus olhos recheados de brilho iluminam os meus, a minha cabeça pensa tanto. Tentei ler-te mais uma vez. Mas tu mostras uma página, e voltas a fechar o livro. A história é longa e eu tenho medo de não me dares tempo de a ler, quem sabe sequer se me darás o privilegio de a conhecer. Completa. Intensa. Verdadeira. Duvido. Sempre guardarás para ti o que realmente dói. Podes até contá-lo. Mas partilhá-lo? Nunca. Com a partilha, vem a dádiva. Tu não me queres dar o teu sofrimento que te corroí, apesar de pareceres sempre tão imune, eu sei que ele ferve nas tuas veias, é pesado na tua alma e naquela noite caiu leve pelos teus olhos e fechou-se nos teus lábios. Deste-me a beber um sal amargo. Eu dei-te o doce das minhas mãos e o silêncio  para te dar o espaço. Amar-te é isto.

sábado, janeiro 21

A abstracção total da existência que nos carrega nos braços e nos leva para outra dimensão onde nos encontramos nus de tudo o que nos envolve. Paramos. Só a mente não resiste a continuar. Começamos a viagem, acendemos um cigarro que no fumo guarda as nossas histórias e que a cada beijo nos leva o cansaço. Até que atingimos o nosso destino.  LEVE.  Só nós por dentro e o mundo lá fora. Mas um fora que não nos toca, que não nos abraça. Estamos desprotegidos de fora, a nossa protecção surge do interior do nosso corpo. O coração embala-nos. Os nossos olhos fecham-se. Um momento torna-se eternidade. Conhecemos a felicidade. Agora podemos fechar a porta e voltar ao mundo outra vez.

quarta-feira, janeiro 18


A mulher dos lábios vermelhos

A mulher dos lábios vermelhos estava sentada no chão. Os seus olhos procuravam respostas que o chão manchado onde se apoiava, não sabia dar. Olhou para o tecto, encontrou um vazio branco que lhe cegou os olhos ansiosos de ouvir palavras e conforto. Acendeu um cigarro e permaneceu ali embalada pelo fumo. O cigarro escondeu a dor, apagou por segundos  a tristeza que se desenrolava nos gestos, num simples respirar. No chão o cinzeiro laranja aceso de beatas. Apagou o cigarro marcado pelo batom vermelho. Pediu ajuda mas a voz seca não o permitiu, Nos olhos acendeu-se uma luz que cheirava a morte. Ela morreu e ninguém deu conta. Nos sorrisos tanta dor e ninguém viu. Nos olhos tanta mágoa e ninguém os leu. Ela morreu. Tu não viste, Não sentiste. Não sabes. Ela partiu.